Dark Patterns & Direito: quando interfaces enganam o consumidor digital
- Cristiano França Ferreira
- 11 de jul.
- 5 min de leitura

Dark Patterns & Direito: quando interfaces enganam o consumidor digital
Ao navegar por um site de compras ou instalar um aplicativo no celular, o consumidor muitas vezes não percebe que está sendo conduzido a tomar decisões contrárias ao seu próprio interesse. Botões que destacam a opção “aceitar” enquanto escondem a opção “recusar”, caixas de seleção pré-marcadas, processos de cancelamento intencionalmente difíceis: esses são exemplos do que o mundo digital batizou de dark patterns - ou padrões escuros de design.
Mas o que poucos sabem é que essas práticas, apesar de aparentemente inofensivas, podem configurar violações graves ao Direito do Consumidor. A arquitetura da persuasão digital, quando utilizada para manipular o comportamento do usuário, toca o cerne da proteção jurídica da autonomia da vontade - conceito essencial nas relações privadas. E o Direito brasileiro, embora ainda não regule diretamente os dark patterns, já oferece ferramentas para combatê - los.
O que são dark patterns?

O termo foi cunhado por Harry Brignull, doutor em Ciências Cognitivas pela University College London, em 2010. Ele definiu dark patterns como elementos de interface que, de forma intencional, induzem o usuário a tomar decisões que ele provavelmente não tomaria se estivesse plenamente informado.
Não se trata de erros ou de má programação, mas de design estratégico para manipular: apresentar a informação de modo assimétrico, destacar opções desejadas pela empresa e camuflar alternativas que seriam mais vantajosas ao usuário.
Entre os padrões mais comuns, estão:
Confirmshaming: linguagem que faz o usuário sentir culpa por optar por não aceitar algo;
Trick questions: perguntas ambíguas ou invertidas, dificultando a compreensão;
Roach motel: fácil entrar em um serviço, mas extremamente difícil sair;
Hidden costs: valores adicionados ao final de uma transação, sem aviso prévio.
Essas práticas, ainda que sutis, comprometem a liberdade de escolha e o consentimento informado, pilares do ordenamento jurídico nas relações contratuais e consumeristas.
A proteção do consumidor no Brasil

Embora o Código de Defesa do Consumidor (CDC) não trate diretamente do design de interfaces, seus princípios são plenamente aplicáveis às interações digitais. O artigo 6º, III, garante ao consumidor o direito à informação clara, precisa e ostensiva.
O artigo 37 proíbe práticas publicitárias enganosas ou abusivas. E o artigo 39, IV, veda práticas coercitivas ou desleais que levem o consumidor a assumir obrigações desproporcionais.
Portanto, ao ocultar ou camuflar alternativas legítimas, dificultar o cancelamento de um serviço ou induzir a aceitação de cláusulas desvantajosas, a interface digital pode estar violando frontalmente o CDC.
Além disso, a culpa do fornecedor por induzir ao erro, nos termos do artigo 14 do CDC, é objetiva: independe de dolo ou culpa, bastando a demonstração do defeito no fornecimento do serviço.
Caso real: a Amazon e o “cancelamento invisível”

Em julho de 2023, a Comissão Federal de Comércio dos EUA (FTC) entrou com um processo contra a Amazon por dificultar propositalmente o cancelamento de assinaturas do Amazon Prime. Segundo a denúncia, a empresa utilizava designs enganosos que levavam o consumidor a desistir da tentativa de cancelamento, escondendo a opção sob múltiplas camadas de navegação.
A repercussão internacional desse caso acendeu o alerta: empresas globais, inclusive as que atuam no Brasil, podem estar sujeitas a sanções por abuso na arquitetura digital.
A jurisprudência brasileira, embora ainda tímida, já reconheceu a nulidade de cláusulas contratadas sob induzimento por erro ou ausência de transparência no ambiente online, com base no CDC.
LGPD e o consentimento inequívoco
Outro dispositivo essencial é a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). O artigo 8º exige que o tratamento de dados pessoais tenha por base consentimento livre, informado e inequívoco. Ora, se a interface leva o usuário a permitir o uso de dados por omissão (opt-out), ou dificulta a recusa, esse consentimento pode ser considerado inválido.
A Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) já sinalizou, em guias técnicos, que a utilização de design manipulativo compromete a legitimidade da coleta de dados pessoais. Além disso, o artigo 42 da LGPD prevê responsabilidade civil do controlador que causar dano ao titular por tratamento inadequado - inclusive se esse dano decorrer de design enganoso.
A discussão internacional e os primeiros reflexos no Brasil
A União Europeia, por meio do Regulamento Geral de Proteção de Dados (GDPR) e do Digital Services Act, já considera os dark patterns como práticas abusivas de mercado. Em 2022, o Parlamento Europeu aprovou diretrizes que proíbem explicitamente o uso de arquitetura digital para manipular a decisão do consumidor.
Nos Estados Unidos, a FTC e os estados da Califórnia e Nova York já moveram ações contra empresas que utilizaram dark patterns em apps de jogos, streaming e plataformas de saúde.
No Brasil, ainda não há legislação específica sobre o tema, mas o PL 2630/2020 (conhecido como PL das Fake News) prevê em seu artigo 19 a proibição da indução ao erro por meio de interface enganosa.
Ou seja: há um movimento normativo emergente no país, ainda em construção, que começa a reconhecer a importância do design como instrumento regulável.
Interfaces como instrumento de dominação digital

A crítica aos dark patterns não é apenas jurídica. É também filosófica e ética. Para autores como Byung-Chul Han, vivemos na era da “sociedade da transparência” - onde o excesso de informação é usado não para libertar, mas para manipular o comportamento humano por saturação. O design se transforma em engenharia da decisão.
Nesse contexto, a interface digital deixa de ser neutra. Ela se torna um instrumento de poder, com capacidade de suprimir a vontade individual sob a aparência da escolha.
A pergunta fundamental, então, é: como o Direito lida com a manipulação estética da autonomia da vontade?
A resposta passa pela aplicação criativa dos princípios contratuais da boa-fé, da função social do contrato, do equilíbrio das prestações e da proteção à confiança legítima. Mesmo sem regulação específica, é possível utilizar esses fundamentos para contestar cláusulas firmadas sob vício de consentimento induzido por dark patterns.
Responsabilidade das empresas e papel do Judiciário

Empresas que adotam esse tipo de design assumem o risco jurídico de ter seus contratos anulados, seus termos desconsiderados, ou seus dados coletados sem validade.
O Judiciário brasileiro tem, gradualmente, se tornado sensível ao tema. Decisões como a do TJMG (Apelação Cível nº 1.0000.21.067299-2/001), que anulou cláusulas de fidelização escondidas em contratos de operadoras de telefonia, demonstram que a manipulação da interface pode ser equiparada a prática abusiva e falta de clareza contratual.
Além disso, juízos de pequenas causas já começam a reconhecer a relevância do contexto digital nas decisões de consumo - e há um movimento crescente entre magistrados e promotores para debater a responsabilidade das plataformas digitais diante de padrões de design manipulativos.
Como agir diante de dark patterns?
O consumidor que se sentir lesado pode adotar diversas medidas:
Documentar a navegação, com prints e vídeos;
Registrar reclamação em plataformas como Procon e Consumidor.gov;
Propor ação judicial com base no CDC e LGPD;
Requerer inversão do ônus da prova, com base no artigo 6º, VIII do CDC;
Acionar a ANPD, caso o consentimento para uso de dados tenha sido obtido por indução.
Advogados também podem propor ações civis públicas, quando houver dano coletivo, especialmente em serviços com milhões de usuários.
Conclusão: quando o clique não é tão livre assim

A liberdade contratual, tão celebrada nas relações civis, não pode ser romantizada em um cenário digital onde o consentimento é induzido. O Direito precisa reconhecer que a interface é parte do contrato. E, sendo parte, deve obedecer aos mesmos princípios: clareza, equilíbrio e boa - fé.
A era dos contratos com letras miúdas e botões camuflados está sendo desmascarada. E a advocacia tem um papel decisivo nisso - não apenas como defensora do cliente, mas como guardião da verdade digital.
Porque, no fim, não é o consumidor que deve se adaptar à tecnologia, mas a tecnologia que deve respeitar o consumidor.
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